sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Há uns dias encontrei na blogosfera esta conversa, entre Francisco José Viegas e Tiago Carvalho, onde não podia deixar de me meter. Para o caso de não aparecer n'A Origem das Espécies, deixo aqui o e-mail que enviei a FJV:


Permitam-me que me junte à vossa conversa e perdoem-me não acompanhar a vossa eloquência.

Uso a bicicleta como meio de transporte, não uso capacete e também não gosto de astronautas. Quanto à lycra uso-a exclusivamente nos desportos aquáticos porque, além de não a achar confortável em terra, associo-a directa e inconscientemente ao desporto hardcore e a transpiração extrema, de tal forma que só de ver alguém vestido de lycra sinto comichões. Há uns meses vim trabalhar para Sines onde fiz uma descoberta aterradora. Descobri então que algumas pessoas desta pequeníssima cidade se fazem deslocar diariamente de carro para todo o lado (por vezes em distâncias inferiores a 400 m). Fiquei ainda mais surpreendido quando encontrei algumas dessas pessoas trajadas de astronauta, com calções de lycra, sweat-shirts e garrafinha de água na mão, a marchar furiosamente pela marginal aos pares e aos trios... com o espanto demorei a perceber que estavam a praticar o footing porque, dizem os médicos, é uma actividade desportiva muito benéfica para a saúde e muito eficaz na redução do risco de doenças cardio-vasculares. Apeteceu-me gritar: Vão-se Footing, pá! Passam o dia sentados no escritório ou no café, para onde vão sentados no carro, e ao fim da tarde vão suar que nem umas bestas, a praticar o footing!!!

Como urbanista, considero esta perspectiva da actividade física perversa e perigosa para as nossas cidades... pessoalmente acho-a completamente idiota e só encontro explicação para ela no domínio da psicanálise.


O perigo da amnésia ou Tal como algumas pessoas já não concebem a vida sem telemóvel:


Se entendemos a locomoção humana, o andar a pé, como uma coisa do domínio do desporto estamos, desde logo, a renegar uma adaptação natural conseguida ao longo de milhões de anos de evolução, que nos permite gastar menos um terço da energia que um quadrúpede, por unidade de distância percorrida, e 15 vezes menos que um automóvel!

Suponhamos, por absurdo, que no futuro o andar a pé “ascende” à categoria de desporto. Numa cidade como Lisboa, onde os passeios já são barbaramente invadidos por automóveis, a solução “natural” seria convertê-los em estacionamento e substituí-los por modernas pistas de footing ao longo das marginais ou dos parques – ainda mais modernas que as actualmente existentes no Estoril ou Algés. Seria o fim da cidade tal como descrita por Jane Jacobs ou Manuel Leal da Costa Lobo, e a concretização tardia do delírio Modernista de Le Corbusier, num momento em que a carta de Atenas já não passa de uma curiosidade histórica, comprovadamente descabida para servir o desenho de habitats humanos.

Encontro claramente um paralelismo entre os astronautas do pedal e os astronautas do footing. Para muitas pessoas o facto de eu chegar ao trabalho de bicicleta faz de mim um desportista... e qualquer dia acontecerá o mesmo a quem chegar a pé?


A necessária inversão da perspectiva:


Num Mundo acelerado, em que o espaço e o tempo são recursos cada vez mais escassos, encontramos na multifuncionalidade dos espaços e do tempo soluções muito interessantes. Para dar um exemplo: ao contrário de algumas pessoas que aceleram (e travam... e voltam a acelerar e a travar) as suas viaturas de casa para o trabalho, do trabalho para o ginásio (onde praticam o footing em passadeiras e o ciclismo dá pelo nome de RPM) e do ginásio para casa, eu, na minha bicicleta faço o exercício do ginásio, de casa para o trabalho, do trabalho para a mercearia, da mercearia para casa. Não o faço pelo incentivo do Sr. António Costa mas porque assim poupo tempo, poupo espaço e, mais importante que tudo, poupo dinheiro (além do gozo que me dá passar por entre os carros na Av. De Roma na hora de ponta)... e assim o tenho feito desde há 5 anos para cá. Teria sido uma ideia genial se não fosse tão óbvia e estaria rico se, à semelhança da Lycra, esta descoberta fosse patenteável.

Um exemplo mais comum pode ser encontrado no espaço do WC e no tempo de enviar um fax onde muita gente aproveita simultaneamente para pôr a leitura em dia. Le Corbusier diria: até leria na casa de banho se não preferisse a biblioteca (tal como FJV prefere o paredão do Estoril), Hitler proibiria a leitura no WC (tal como proibiu a circulação de bicicletas fora das ciclovias, que por sinal foram inventadas pelo III Reich como forma de abrir as ruas ao Volksvagen). E assim se perpetua o despautério Modernista, que despreza a história e reinventa a pólvora para mais tarde perceber que a solução original era melhor.

Por trabalhar em planeamento urbano tenho que considerar as realidades emergentes e tentar antecipar as tendências futuras, a intuição diz-me que mais cedo ou mais tarde vamos ser obrigados a mudar os nossos hábitos de mobilidade. A questão é se temos a coragem de defender a mudança necessária e o estômago para aguentar comentários de “velhos do Restelo”, ou se nos resignamos a ser confortáveis cidadãos dum País que vai a reboque e só muda quando já não tem alternativa. Nunca tive dúvidas que a política exige estômago mas fico contente por ver algumas demonstrações de coragem.



Duarte Sobral


2 comentários:

Anónimo disse...

Subscrevo sem grandes reservas e quanto a psicanálise - que gozo passar pelos carros à hora de ponta seja onde for em Lisboa! De qualquer maneira parece-me que simplesmente o sr.FJV não sabe, não faz ideia - aliás, nem o sr.Costa. Era deixá-los ir à sua vida (de carrinho, ou assim...) não fossem eles quem são (quero dizer - não tivessem eles o impacto que têm enquanto opinionmakers e/ou decisionmakers) que nós por cá, passando por eles nos seus carrinhos lá vamos espalhando 'in situ' e em tempo real a nossa opinião enquanto eles buzinam porque ficaram parados no vermelho e nós não. Bem feito!
Um abraço

Mario J Alves disse...

Excelente. Pena que o FJV não tenha comentários abertos... o que sinceramente acho má "política" e pouco "abertura".

De qq forma, espero que a mensagem tenha passado!

Abraços,
Mário